Moacyr Scliar, no jornal dos estudantes da Faculdade de Medicina "O Bisturi", escreveu no número de jan-fev de 1961 o seguinte texto: "FISIOLOGIA DE UM JOVEM". E nos permitiu reproduzí-lo neste Blog. -----Sendo adolescente, acordou naquela manhã completamente exausto após as aventuras no reino dos sonhos, que foram várias. Estava roto: os musculos doiam, os ligamentos estavam flacidos, e o rosto era uma lamentavel massa de cabelos doidos cobrindo olhos avermelhados. No entanto, e mostrando um desprezo irritado pela lavagem de dentes, dirigiu-se à cozinha, onde despejou fornalha abaixo, café, bife, ovo, pão, queijo, manteiga. As células vibraram ao receber a reconfortante carga de calorias, e só então, e realmente despertaram. Com o que ele lavou-se e cobriu o conjunto com a camisa vermelha, calças azuis e sapatos italianos, sentindo-se apto a participar da luta pela vida. Abriu a porta do hangar e deslizou para fora. Sob o sol das dez horas, a larga avenida escorria tranquila seu asfalto cinzento. Uma brisa enfunou sua camisa e ele, caravela, partiu glorioso e lento. Seu destino era o pouco importante: era preciso assobiar e ele o fez com ritmo, cuidado e entusiasmo, cônscio que os olhos da humanidade estavam sobre ele. Em breve verificou que, sendo a vida curta e a tarefa urgente, jamais chagaria sem um bonde. Tomou-o, pois, num instante em que os dois motores trabalhavam em ritmo lento. Ali haviam vários anuncios que foram logo captados por sua central cerebral, e rejeitados porque lembravam a infancia. Com mais interesse percorreu os bancos e não tardou a encontrar a morena dos seus sonhos, à qual as supra-renais reagiram como de costume, lançando na circulação os hormônios necessários. Começou pois a trabalhar silenciosamente, e só um crispar dos punhos agarrados no suporte mostrava a atividade intensa. A morena ollhou-o, e de golpe desviou sua cabeça de cento e oitenta graus sobre o eixo do pescoço. Voltou mais lentamente, para receber nova descarga que dificilmente suportou, até que foi obrigado a aceitar o fato novo, inaudito e terrivel de que morena o contemplava. Diante disto, houve um alarma geral em seu organismo, e torrentes de adrenalina fluiram no corpo. O coração foi motor de alta potencia, mas os intestinos experimentaram uma cólica covarde. O sangue abandonou a metade superior, deixando um rosto pálido e foi para as pernas baterem como bielas, obrigando uma das mãos a mergulhar no bolso. A morena olhava-o. Ele suplicou a todos os deuses que ela não fizesse tal coisa, mas ela fazia e lá estava ele desamparado, perante toda a masculinidade irritada esperando que ele cumprisse com seu dever. Então a cabeça baixou, antes tombou e ela correspondeu com um aceno calmo e distraido, que foi um novo soco nos peitos. Estava apenas em recuperação, quando ela desceu do bonde, e ele, num gesto de sublime loucura, consolando-se que estava perto. Ela avançava com garbo, e ele rastejava atras. Até que ela se deteve à porta de uma casa, e ficou procurando a chave na bolsa. Em dez passos ele a alcançou, engasgou um olá e ficou desarvorado. Olá, disse ela gentilmente, e aguardou. Dele nada mais saiu, pois agonizava branco e tremulo. A morena, então, pos-se a falar com a vizinha do outro lado, deixando-o no fogo cruzado das rajadas de amabilidades. Uma raiva cruel chicoteou-o, e ele juntando seus ultimos frangalhos, reagiu. Respirou fundo ergueu a cabeça e perguntou com a derradeira dignidade: Onde é que se vende cadeados? Recebeu uma resposta qualquer, e conseguiu partir, de cabeça erguida, em busca das mulheres que o esperavam lá pelos seus vinte anos. Nicanor Letti ´site: nicanor.letti@terra.com.br
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