Sarmento Leite faleceu em 25 de abril de 1935. O caixão mortuário foi colocado frente a escadaria interna do prédio. Ali o quartanista Rubens Maciel, em nome dos estudantes pronunciou as seguintes palavras:
Professor Sarmento, nosso grande mestre e grande amigo: Para dentro ainda os umbrais desta Faculdade, feita grande com a grandeza de seu devotamento; neste mesmo sitio em que parece perpassar ainda, acurvada peloss anos, a sua figura querida: trazidos de todos os cantos pela imensidade do pesar comum, os seus alunos se reunem e calam, para ouvir a sua última lição. Repare bem: vieram todos. Mesmo os que vinham pouco. Mesmo os que não vinham quase. Até os que não vinham mais. De perto,desprezando canseiras, esquecendo compromissos, deixando de lado por mesquinha, qualquer preocupação para que não fosse a de ouvi-lo. Iniciados que o medo ensaiam os primeiros passos, sob as naves magestosas do templo hipocratico; e mestres conhecedores dos segredos da arte, encanecendo já na luta pelo Bem. Vieram todos. Porque esta é a sua aula de encerramento do curso, e esse curso se conta por vinte anos de diretoria, 36 de magistério e toda uma vida de abnegação e de sacrificio. E juntos, em silencio, buscando enxergar por entre o nevoeiro de lágrimas, eles procuram compreender a maior de suas lições: aquela que não mais se indagam os segredos da Vida, mas se encara e sente a grandeza da Vida. Rodeado de homenagens as maiores que organizar se pôde, mas que ficam muito aquém do seu merecimento e do nosso desejo, sob a guarda carinhosa de uma Escola onde as hierarquias se apagaram, irmanados os corações no mesmo sofrimento; cercado pelo que a classe médica e a sociedade tem de melhor e mais fino, Sarmento Leite repousa no seu caixão mortuário. Não foi potentado. O cargo de diretor, a que se deu inteiro vinte anos de sua vida, não lhe traziam a possibilidade de merces e favores, com que comprar a estima fácil e a gratidão barata. Não foi um argentário. Nas ruas em que deslizam os automóveis de luxo, pouca gente notaria o passo tardo do velho senhor, trajando modestamente a sua roupa surrada e saindo cedo para chegar a tempo. Não foi um demagogo. Na sua linha de conduta não havia lugar para a encenação de grandeza, com que se pagasse, na administração da massa, das agruras do caminho. Foi um simples, foi um pobre, foi quase um ignorado. Tinha todas as condições dos que passam sem ruido, e no entanto seu enterro é uma consagração. Onde o motivo, onde o porque desta exceção? Lição admiravel e única, profunda pela significação e majestosa pelo ensinamento. O milagre da bondade e do despreendimento; da coragem e da decisão; da simplicidade e do afeto. A história simples e sublime do Mestre entre todos insigne, que viveu ensinando e que ensinou vivendo. Sarmento Leite foi o mais puro o mais nobre e o mais desinteressado dos amigos desta Faculdade. Diretor vinte anos, em épocas em que a vida da Faculdade exigia luta com o Poder Público, ele jamais titubeou em arriscar seu bem-estar e sua vida, desde que se tratasse do futuro da sua Escola. Nunca teve limitação de horário, nem se prendeu a atribuições de cargo. Trabalhava sempre e trabalhava em tudo. Foi bem-feitor desta Faculdade, e o malfeitor de si mesmo. E foi, tambem, o grande e sempre atento amigo dos alunos. Conhecia-os um por um, e somos quase quinhentos. A toda hora em todo o lugar, havia junto de si um caminho desimpedido por onde um aluno se aproximasse. Todas as petições tinham o seu interesse e todas as situações o seu conselho. Vinte anos apresentou relatorios da direção, e vinte anos, nesse relatorio, as faltas dos alunos foram representadas por uma página em branco. Como tesoureiro, exigia, como diretor perdoava: e houve, muitas vezes, na magreza do seu orçamento, cortes a fazer para pagar as liberdades do coração. E nunca pensou em recompensa. Incomodavam-no os elogios. Era bom com naturalidade dos que o são por natureza e sem esforço. Quando se agitam neste mare magnum que, disse-o insigne mestre, é hipertrofia dos direitos, ele continuou sempre na observância estóica do que considerava deveres. E, chegada sua hora, morreu como vivera: sereno, com equilibrioo e a tranquilidade dos que não tem crimes. Senhores: se toda a boa causa, como às vezes parece, traz consigo a crueldade de exigir uma vitima, pensando no presente e no futuro de nossa Escola, e no que ela custou de labores e desgostos, que envelhecem e matam, creio que estamos todos de acordo em que repousa neste esquife, galvanizado por uma vida inteira de luta, o despojo venerando do Grande Sacrificio. Velho Satrmento, como nós te chamavamos: perdoa se a palavra foi fraca, porque o sentir foi grande, e não houve calma para cuidar da forma. Os teus alunos que, com dever-te a Faculdade, vida em fora, hão de guardar aceso à tua lembrança e a lição de Beleza Moral que tu nos deste. Velho Sarmento, adeus. Nicanor Letti. site:nicanor.letti.com/
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