Faculdade de Medicina da UFRGS

Armando Camara e Annes Dias

A dor limita a curiosidade; o nascer da interrogação preludia a morte da emoção. Não convivem, harmonicamente, dentro de um mesmo campo de conciencia, a atitude analitica do espirito e a vivencia emocional. Siderados os que aqui estamos, por uma grande dor, não a profanaremos, talvez, ensaiando a analise e a compreensão de um aspecto da personalidade do amigo que despareceu nas sombras da morte? Não sera a nossa, una curiosidade irreverente e frivola, delatora da carencia de um amor real, de uma emoção autentica? Não! Inteligencia que prescruta e interroga, memoria que evoca, imaginação que cria e associa, atenção que discerne e analisa, todas essas forças do espirito, em busca de compreensão, emergem de uma exigencia emocional, para imergir outra vez, no mundo calido do sentimento e da piedade. Toda essa evocação do amigo é uma parafrase, impotente porque humana, daquele apelo ao Senhor da Vida e da Morte, diante do tumulo do discipulo que amava: Lazaro -- vem para fora. Ensaiamos o gesto liturgico da ressureição, de uma ressureição em nos, no nosso mundo interior, daquele com quem desejariamos, agora, dialogar, sentir junto de nos a realidade total de sua presença luminosa e humana. Essa emoção traduz nossa melancolia, é um gemido de nossa saudade. Tememos que o tempo - unico e autentico coveiro - com a aluvião das experiencias que em nos deposita, enterre em nossa alma, a imagem viva de alguem que, ate ontem, marchava ao nosso lado, enchendo nosso caminho de luz e beleza. Sobre Annes Dias médico e amigo, ouvistes ja sujestivos depoimentos. Coube-me a evocação da humanidade de Annes Dias. Contempla-la é registrar, numa existencia humana, a solução integral cheia de acentos triunfais, de um problema que, erroneamente solvido, gera muito drama humano, individual e social, cria crises nas almas e nos povos: o da atualização harmonica e integral das virtualidades da nossa natureza, da efetivação plena da unidade humana. A vida de Annes Dias encerra uma esplendida sugestão a todas as almas que buscam a realização dessa unidade humana, que tentam, numa atmosfera de tragedia, esculpir em si mesmas uma forma ideal, que procuram a coonsonancia das vozes diversas, dos apelos em conflito, que se afirmam no seu mundo interior. E essas vozes. falando, muita vez, linguagem dissonante, esses apelos atraindo frequentemente, em direções opostas, geram muito angustia existencial, fazem o tecido de muita crise do mundo interior e do mundo social. Senhores! A historia é, sob determinado prisma, uma serie de ensaios, uma sucessão de tentativas de definição pelo homem de sua estranha situação, de sua misteriosa realidade. Dessa definição estão pendentes as soluções que damos aos graves problemas da vida. Microcosmos - o homem, en sua natureza complexa. sente em si a ebulição de multiplas tendencias que clamam satisfação. Perturbado por esses apelos, sentindo-se palco e arena de um estranho conflito de forças vitais, que tiranicamente, reclamam satisfação exclusiva ou predominante, ele compreende que todo seu drama radia na opção que deve realizar, entre essas solicitações que se combatem. E busca uma formula de conjugação entre essas polarizações em conflito. O segredo dessa formula se esconde na exata definição do homem - de ssua origem, de sua natureza e de sua suprema destinação. Ha dois mil anos, ecoam aos seus ouvidos as palavras dessa definição. Ele guarda , porem, o privilegio, como ser livre, de não ouvir essas palavras reveladoras do Verbo. Fora da ordem de graça e da caridade, das perspectivas cristãs do ser, fora dessa imagem eterna, conge do clima vitalizante do cristianismo, o homem continua sendo, ainda hoje, esse "ser desconhecido' como observou Alexis Carrel, ou esse "ser impotente", retratado, melancolicamente , por Charles Richet. E, no entanto, nelas estão o segredo da formula de realização da unidade humana, os criterios e as forças de efetivação harmonica do nosso ser, da satisfação hierarquica das exigencias totais da nossa natureza. A lucidez critica do espirito de Annes Dias, seu cristalino bom senso, sua argucia, sua vigorosa aptidão instrutiva e, ainda, a retidão natural de sua conciencia, a pureza moral de sua vida - levaram-no a ver na imagem cristã do homem, sua imagem eterna, a descobrir, na visão catolica da vida, a visão do proprio Criador, o ponto de vista de Deus sobre sua obra. E ele repetiu a opção dso seus grandes mestres - Miguel Couto, entre nos, de Pasteur, de Claude Bernard, em França. E se fez cristão. Essa opção decisiva e vital ofertou ao grande espirito de Annes Dias todos os elementos e recursos de realização plena da unidade de sua existencia, de efetivação integral de sua realidade humana. E foi radiosa, soberba essa realidade. Annes Dias foi um dos mais sugestivos exemplares de humanidade que conhecemos. Em sua vida impar, ele realizou o que o espirito generoso de um filosofo - historiador contemporraneo visiona para o homem uma Idade Nova: o humanismo integral. Annes Dias tratou o fato das exigencias totais da vida, com respeito e docilidade, com a escrupulosa consciencia cientifica, com que tratava os fenomenos, que observava como clinico, que registrava como cieentista e pesquisados. Esteve docil e atento diante de todos os dados e aspectos do problema humano,como acolhedor e compreensivo, diante dos fenomenos emotivos dos seus enfermos, afim de formular o verdadeiro diagnostico e aplicar a terapeutica adequada e eficaz. Sua alma abriu-se, abandonou-se à sedução dos mais puros apelos da vida. Ele viveu forte e profundamente o poema do lar, as belezas seenas e fecundas da vida familiar. Ele experimentou, e fez mutas almas esperimentarem, a pura e rara ssedução da amizade. Esteve nobremente atento as exigencias do Bem Comum da Nação. A fome da beleza que trabalha todo homem autentico afirmou-se fortemente na vida do ilustre cientista. Os que com ele privaram guardam impressões indeleveis das multiformes expressões do seu senso estetico, de ssuas aptidões literarias e de sua extrema informação artistica, da finura de sua sensibilidade, do refinamento de sua estesia. Os apelos da concienca, as exigencias da realização do Bem Moral atendeu-os Annes Dias,com uma austeridade cristã exemplar, que desconheceu farisaismos e que ignorou afetações catonianas. Ao valor "verdade", de modo particular, prestou um culto enternecido, total e continuo como homem e como cientista.Sua ciencia era autentica e total; ele soube humaniza-la. Desconheceu a especialização embobrecedora, o unilateralismo artificial e conprometedor da inteligencia esterelizante do coração."O sabio não investiga, apenas, pelo prazer de pesquizar; ele procura a verdade para possui-pa" disse Claude Bernard, no ultimo capitulo de sua "Introdução a Medicina Experimental". E, acrescentou:"o sabio não deve se deter no caminho, ele deve se elevar, sempre mais, e tender a perfeição.. É necessario impedir que o espirito, absorvido pelo conhecimento de sua ciencia especial, tenda ao repouso e a satisfação, e se arraste no terra-terra, perdendo a visão dos problemas que esperam solução".Negar esses problemas, não seria suprimi-los, seria, apenas, fechar os olhos, e crer que a luz não existe. Annes Dias, como Claude Bernard, não procurou, apenas verdades; aspirou com todas as forças de sua vigorosa inteligencia, a posse da verdade, buscou a perfeição. Ele ignorou ou melhor desprezou, como o grande Grasset, a quem tanto admirava, as mutilações da vida intelectual. os jejuns metafisicos e as posições anti-humanas do cientifismo. Tentou, continuamene, guardar os salutares contatos das verdades parciais da ciencia positiva e experimental, com as grandes verdades conquistadas pelo genio dos filosofos e purificadas pelas luzes da revelação. Ele havia lido em Pascal que o coração tem razões que a razão não conhece. Ele admirava o asserto magnifico de Ruy Barbosa:"o ideal é a mais concreta e positiva das realidades?"Para Annes Dias, o universo não era, apenas, uma retorta onde se realizam, eternamente, reações quimicas e fenomenos de mecanica; era, tambem, poesia e caridade. Ele sabia que a ciencia ilumina, mas que só o amor dilata, fecunda e imortaliza o ser. Para ele o Cosmos não era ,apenas, maquina que se examina e utiliza; era, tambem, paisagem que se contempla, espetaculo que se admira! O mundo não era, só, um laboratorio em que se investiga e estuda; era templo em que se adora, era lar, onde se ama. Ele pensava, como um eminente membro da Academia de Ciencias de França, que - "o sabio, que tenta remontar a cadeia das causas, se detem, quando sua ignorancia lhe adverte que atingiu a região serena, onde a oração se apresenta aos espiritos profundos, como a forma mais pura do pensamento humano". Essa foi a grande, talvez a maior lição que nos legou o luminoso espirito de Annes Dias, sobre um problema, que , erroneamente solvido, engendrou e cria, ainda, ara individuos e coletividades, para as almas e para as civilizações tantos sofrimentos e crises. Não radicará a razão de vivermos, tão unilateralmente, a nossa natureza total?. Os totalitarismos, que ameaçam o mundo, nao serão na realidade pseudo-totalitarismos? não serão eles, antes de tudo, expressão de unilateralismos? Nazistas, que só contam a realidade da raça e do sangue, e veem no mundo, apenas um quartel onde se prepara o saque; comunistas que postulam a realidade unica da matéria e das exigencias biologicas, e transformam a Terra numa fabrica - não serão essas duas expressões patologicas da cultura moderna manisfestação tragica de anti-humanismo mutilador das exigencias totais do ser humano? Sob esse aspecto, a vida de Annes Dias, tem valor deuma solução experimental de um transcedente problema psicologico e moral. E de uma experiencia positiva, plena de exito, das verdades do humanismo cristão. Senhores! Um reporter qualquer diria, traçando o necrologio de Annes Dias: a morte roubou ao Brasil um grande cientista. Retifiquemos essa filosofia de sala de redação: a Providencia enviou a cultura nacional, atraves da vida luminosa de Annes Dias, uma esplendida mensagem. Diante de determinadas correntes do pensamento nacional, correntes destituidas de sentido historico, extraviadas do leito das tradições ocidentais, latinas e cristãs, correntes de um pensamento negativista, esteril, destruidor, a existencia, esplendida de humanidade e de força criadora de Annes Dias, aí esta como uma confirmação sugestiva das verdades e valores que devem modelar todo homem, verdades e valores que o instinto de morte, de negação, do primarismo moderno agride e ameaça.A existencia plena de exito humano, desse invulgar homem de ciencia constitue um modelo cristalino de itinerario ideal para a evolução da inteligencia brasileira. Senhores! Agora o pesquisador de verdades contempla a Verdade....Agora o grande clinico, que tanto lutou contra a morte, pela conservação da vida de seus doentes, esta na posse da vida imortal....Narra Piere Termier, em sua biografia de Leon Bloy, que, visitando este inquieto e vigoroso pensador, na hora de sua agonia, encontrou-o todo absorvido numa contemplação, com sò seus grandes olhos cartesianos cheios de interrogações e expectativas.... Perguntou Termier: "Temor da morte,Leon? Não, --disse genialmente o grande critico e polemista, - curiosidade! O espirito de Annes Dias , que possuia tão viva percepção do misterio do ser, tão aguda conciencia do milagre permanente da vida, experimentou certamente, na hora extrema, como Leon Bloy, uma grave curiosidade diante do misterio, na iminencia do ser desvendado. Como Goethe, ao morrer, o amigo e mestre suplicou a Luz, quando as trevas da morte baixaram sobre seu espirito. E a Lux do Mundo, o Cristo que é Deus, que é "luz intelectual cheia de amor", revelou-se a esse espirito, nostalgico de Deus, a essa inteligencia sedenta de Verdade Absoluta, e, apos lhe ter doado uma vida esplendida de humanidade integral, eternizou-se em sua forma divina e imortal" Nicanor Letti - http://antoniovalsalva.blogsot.com/

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