Nota: Quando a Faculdade de Medicina, completou 8o anos o "Correio do Povo" publicou o Caderno de Sabado de 22 de julho de 1978 dedicado a Historia da Faculdade, muitos colaboraram. Estamos hoje editando o magnifico artigo do Prof. Oly Lobato sobre seu mestre Thomaz Mariante. .....................................Permitam que eu relate de inicio um episodio, reminiscencia da minha vida academica que, se por um lado, mudou o rumo da atividade profissional que eu planejava, possibilitou-me falar, hoje, em Thomaz Larangeira Mariante. Cheguei ao curso medico pouco antes da bomba de Hiroshima, saudada na ocasião como um imenso e festivo fogo de artificio que pos fim a segunda grande guerra, não sem antes consumir oitenta mil pessoas. Que representavam oitenta mil mil vidas numa guerra que morreram milhões? No plano nacional, encerrava-se tambem uma era: em 29 de outubro de 1945, Getulio Vargas era convidado a retirar-se e dar por encerrado seu longo e personalissimo governo. Eram, pois, tempos de mudança e de expectativas. No plano universitario, fantasiava--se que talvez o fim da guerra traria mais verbas e o Hospital das Clinicas, tão longamente esperado, poderia afinal ser construido ou reconstruido. Mas, enquanto isso, a Santa Casa continuava a ser o grande hospital-escola, onde sucessivas gerações de medicos aperfeiçoavam-se em sua arte do que em sua ciencia, devido as precarias condições locais. Meu primeiro contato com as doenças e os doentes foi justamente atraves do mais externo dos orgãos: a pele. Os raros estudantes que se aventuravam a frequentar os mal cheirosos ambulatorios de Dermatologia e venerologia tinham ocasião de observar os mais variados casos dessas especialidades. Dali, comecei algumas incursões pela clinica e, levado por um colega entrei pela primeira vez na enfermaria 2, uma imensa e escura sala, com varias alas de leitos dispostos lado a lado. Era uma enfermaia de mulheres. Impressionou-me, logo de inicio, o movimento de medicos e estudantes: havia um certo dinamismo e um ar de trabalho responsavel. Mas a clinica não era meu objetivo, pois a aspiração do estudante do meu tempo era a de ser cirurgião. O aspecto heroico da cirurgia nos atraia a todos. O abrir e fechar corpos representava o supremo ideal. O aprendizado não formal da arte de operar era feito assim: no terceiro ano do curso, graças a alguma amizade, conseguia-se entrar como auxiliar de um estudante mais graduado, o chamado externo, em uma das enfermarias de cirurgia. Auxiliava-se nos curativos, faziam-se fichas clinicas, mas não se entrava no ato cirurgico. O acesso à sala de cirurgia era feito como auxiliar de anestesista., geralmente um externo mais veterano. A anestesia era feita com a mascara de Ombredane, um aparelho todo metalico, com aspecto vagamente medieval e o anestesico usado era o eter. Todos na sala, do paciente ao cirurgião, sentiam o efeito do procedimento: aquele dormia os demais ficavam inebriados. Eu tambem comecei a escalada que teminaria, se tudo desse certo, oh gloria, na realização de uma apendicectomia. Auxilei uma anestesia a conduzi quasi sozinho uma segunda e, com imensa dificuldade em enfiar as luvas, participei de uma cirurgia não muito nobre: operar uma fimose de um homem de quarenta anos. Ensaiva-me, assim, na especialidade. Esse começo foi, todavia, interrompido por um episodio lamentavel para as minhas aspirações. Uma das cadeiras do quarto ano era de Tecnica Operatoria e as aulas praticas eram dadas no antigo necroterio, predio de aspecto tão amedrontador que quando criança au passava ao largo, olhando os vidros escuros das janelas com a alma cheia de pavor.Ele não tinha desaparecido aos 22 anos, mas, enfim, dava para assistir as aulas. Um certo dia, o exercicio pratico consistiu na ligadura da arteria humeral. Cada aluno "recebia" um dos braços do cadaver, dissecava-o ate isolar a arteria e passava um fio em torno do vaso, sem apertar muito como recomendava o instrutor, boa pessoa, mas um pouco deslocado da sua area pedagogica. Trabalhei de modo adequado mas ao apertar o nó usei demasiada força e a arteria, friavel e exangue, rompeu-se. Não timha conserto.Fiquei frustado e envergonhado com minha inabilidade. O instrutor passando em revista nosso trabalho examinou a minha "cirurgia". Fez uma cara meio espantada, levantou os olhos para mim e proferiu a frase definitiva; Oly, voce não pode ser cirurgião; voce é muito bruto. Naquele justo momento encerrou-se minha carreira de operador. Não tive outro remedio senão voltar para a Enfermaria 2 e tentar aprender clinica medica. Foi então que conheci o professor Thomaz Mariante e, desde esse momento até o dia em que tive a honra de substitui-lo na catedra, 14 anos depois, nunca deixei de agradecer ao inabil mas arguto instrutor que sem o saber me encaminhou para o caminho certo. Falar de Thomaz Mariante e do que ele representou para a medicina do Rio Grande do Sul exigiria mais espaço, mais tempo e, certamente, mais talento do que o meu. Tentarei, entretanto, e atraves de alguns "flashes", dar uma ideia do que foi o grande mestre. Nunca desvaneceu-se a primeira impressão que tive dele: a de um homem limpo de corpo e alma. Tinha um olhar franco, inteligente e doce, o ar um pouco timido. Era extremamente afavel com todos: fossem médicos, estudantes, pacientes ou enfermeiras e nunca ouvi elevar a voz para censurar ou criticar. Muitas vezes o viamos chegar a enfermaria 2 com seu avental imaculadamente branco, as vezes com um gorro tambem branco e juntava-se a nos, medicos e estudantes, para ver e discutir casos. Com ele aprendemos que um paciente não é um caso clinico, muito menos um numero, mas um ser humano doente que merecia todo o nosso respeito. Lembro-me que numa das sessões do Centro de Estudos em 1953, foi trazida uma paciente portadora de neurofibromatose e as lesões foram mostradas para todos. Ao encerrar a reunião, Thomaz Mariante comentou sobre a divida que tinhamos adquirido com aquela paciente, pois ao chamarmos a atenção para sua doença a tinhamos deixada angustiada, mais do que isso, numa situação de desamparo inferioridade. Enfatizou, então, a importancia de nunca descuidar-mos deste aspecto. Ele, que tanta importancia dava a anamnese, conversava com as pacientes, obtinha os dados clinicos, examinava delicadamente e os esclarecia, com sua experiencia, um diagnostico obscuro. Orientava, sugeria, sempre respeitando a individualidade de seus estudantes e procedia de tal forma que se acabava pensando que as sugestões tinham partido de nos e não dele. Dava um extremo valor a avaliação clinica do paciente e um de seus artigos começava com essas palavras, validas ontem como hoje: "deslumbrada com a precisão aparentamente matematica dos diagnosticos e prognosticos fundados no exame radiologico e eletrocardiografico do coração, a geração medica atual deixa para segundo plano a observação direta do doente, a pesquisa e a interpretação do sintomas e sinais obtidos pelo simples exame clinico, o que, a meu ver, é um erro e um mal!" E continua: "um mal porque a falta de conveniente exercicio, torna obtusos os nossos sentidos, instrumento preciosos de que podemos dispor em qualquer local." Cuidadoso com o bem estar dos pacientes encarregou - Britto Velho e Antonio Azambuja, em 1945, de estudarem a organização de uma cozinha dietetica na enfermaria 2. Sua preocupação com alimentação era tão marcante que, por ocasião de uma conferencia proferida, numa das sessões do Centro, pelo Professor mineiro Versiani Caldeira, manifestou-se com veemencia denunciando o estado de miseria do povo brasileiro, conclamando a classe médica ao combate contra a mais terrivel das doenças - a fome -apontando não só os responsaveis pela situação. como os meios de sanar o mal. Essas eram palavras de um patriota. Alias tudo o que fez e escreveu tinha, entre outras, a finalidade de engrandecer a medicina brasileira. Não titubeava, porem, quando em nome do patriotismo tinha que apontar erros e culpados. Isso fica bem claro num dos seus artigos publicados em 1934, quando diz: "O entusiasmo do medico e o orgulho do brasileiro foram os motivadores do presente estudo. Somos um povo priveligeado pela mão de Deus, mas, infelizmente, a imprevidencia de nossos homens tem retardato o aproveitamento e a utilização dos tesouros que nosso solo encerra." Isso foi ha mais de quarenta anos.Thomaz Mariante era um incansavel estudioso e o artigo, sobre as aguas de Poços de Caldas e Irai, mostra a multiplicidade de seus interresses e a forma com que abordava os mais variados assuntos medicos, iluminando-os com sua inteligencia e erudição. Esses variados interesses não o impediram de manter-se atualizado. Assim em 1943 numa conferencia intitulada " A penicilina suas origens e suas indicações", expoe tudo o que havia no momento sobre o novo medicamento. Note-se que a penicilina tinha sido usada nos EE.UU. pela primeira vez, e a titulo experimental, em pacientes com infecções estafilococicas e estreptococicas graves, apenas dois anos antes, e alem disso estavamos em plena guerra, o que dificultava as comunicações cientificas. Nessa mesma conferencia e numa antevisão genial do que seria constatado apenas muitos anos mais tarde, Thomaz Mariante chamou atenção para uma possiel ação lesiva do antibiotico sobre o rim e a necessidade de pesquisas ness sentido. Alias, entre os mil maleficios da guerra, surgiu para nos medicos do Rio Grande do Sul um benficio: a fundação do Centro de Estudos que mais tarde receberia o nome de seu patrono, Thomaz Mariante e cujas atividades iniciaram-se exatamente as 21 horas do dia 25 de julho de 1940 em uma das salas do consusltorio ds drs. Artur Greco e Carlos Osorio Loes. A finalidade basica da sociedade era de aperfeiçoar e ampliar os conhecimentos de medicina interna atraves de reuniões periodicas em que seriam expostos temas de atualidade ou os resultados das pesquisa eventualmente realizadas. Todavia, como ja escrevi em outra parte a analise retrospectiva que hoje podemos fazer, revela, entretanto, uma outra motivação, quiça inconsciente: é a que com a França, a Alemanha e a Inglaterra conflagradas secavam-se automaticamente as fontes de conhecimento cientifico que por mais de meio seculo nutriram a medicina brasileira. Não dispunhamos dos livros e revistas e informes cientificos que vinham daqueles paises. Estavamos a merce de nos mesmos e do que poderiamoss fazer, descobrir e pesquisar. Justamente neste momento, fruto de uma atitude no qual havia um colorido misto de pioneirismo e libertação, fundou-se o Centro de Estudos Thomaz Mariante (CETM). Nesse centro, Thomaz Mariante conseguiu aglutinar algumas das mais representativas figuras da medicina gaucha e na sessão inaugural estavam presentes: Carlos Osorio Lopes, Oswaldo Ludwig, Antonio Azambuja, Mario Salis, Carlos de Britto Velho, João Rechden e Manoel Madeira da Rosa, aos quas juntaram-se depois Jose Flores Soares, Antonio Messias, Eduardo Faraco e tantos outros. Algumas atribuições, num certo sentido originais para o nosso meio foram objeto de apresentação em reuniões. Talves a primeira sessão anatomo-clinica realizada em nossa Faculdade tenha ocorrido em 20 de agosto de 1943. Era um caso de cardiopatia reumatica apresentada pelo estudante Antonio Messias, sendo patologista do Dr. Heitor Cirne Lima, que evidenciou os achados histopatologicos com a progeção de diapositivos, feito heroico para aqueles tempos. Em primeiro de setembro de 1944, foi apresentado o primeiro caso de anemia falciforme no RGS diagnosticado e o relator foi o Dr.Mario Balve. Em 8 de outubro de 1945 foi abordado "Tratamento das Febres Tificas" pelo Dr. Antonio Gonzales. Interessante, nesta reunião, foi a intervenção de Flores Soares ao referir-se que a cistite, como complicção da febre tifoide, poderia ser causada pela urotropina administrada aos pacientes. Uma suposição confirmada mais tarde por todos que tratam infecção urinaria com aquela droga. Em 7 de novembro de 1946, Antonio Azambuja aborda "Tratamento cirurgico da Hipertensão Arterial" e comunica os resultados do primeiro caso operado em Porto Alegre por Bruno Marsiaj. Em maio de 46 Waldemar Job de "Alguns aspectos da medicina na America do Norte" tinha permanecido um ano naquela pais. Comentou sobre o uso do "thiouracil" no hipertireoidismo e prometeu que dentro de alguns meses teriamos a Stretomycin, droga que como a penicilina estava sendo usada dentro e fora das suas indicações. Uma atitude simpatica da presidencia do centro em abril de 1947 cancelamento da divida dos estudantes, uma vez que havia saldo positivo de CR$ 1.990,00. O autor da proposta foi o presidente Dr. Antonio Azambuja.Um assunto levantado por Carlos de Britto Velho numa das sessões anteriores (maio de 45), fora o da "Medicina Psicossomatica", a proposito da qual fizera algumas considerações em função de um interessante caso clinico por ele mesmo relatado. O espirito inquieto do Prof. Mariante não deixou passar o importante mote, ou melhor, retomou-o, pois afinal tinha sido ele que havia escrito em 37 ao falar da convenção constitucionalista, que felizmente a epoca do materialismo passou e o nascimento do espiritualismo surge como uma reação necessaria e salutar a libertar os espiritos das cadeias que o prendiam a materia e a permitir a medicina uma mais exata e perfeita compreensão do homem doente. Mais adiante no mesmo texto e numa antecipação do que Balint muito mais tarde, viria a chamar "de um médico como remedio" diz Mariante: muitas vezes, mais do que uma droga , necessita o doente de um apoio moral e espiritual a lhe erguer as energias abatidas, para que a luta se possa dar em melhores condições, pois que é toda esta unidade psico-fisica que vai combater a causa do desequilibrio para procurar restabelecer o ritmo alterado. Nessas duas passagens fica bem claro sua necessidade de entender e tratar o paciente como um todo, isto é, da pratica de uma medicina psicossomatica, ou melhor integral e holistica. Por issso, apos cuidadosa leitura dos livros de Weiss-English e Flanders Dunbar, os disponiveis na ocasião 1950, elaborou um modelo de interrogatorio psicossomatico e tentou indroduzi-lo em seu serviço. O terreno não estava preparado e a semente so veio a germinar muitos anos depois. Mas Mariante não tinha a cobiça do lucro imediato: plantava para o futuro. Assim tambem foi com a nefrologia. Seus primeiros trabalhos sobre as doenças renais foram escritos em 1934 e esse assunto constituiu-se em objeto de seu interesse durante varios anos e multiplas foram suas publicações a respeito. Seu espirito universalista não podia ficar restrito aos limites de uma especialidade e por isso não se transformou num nefrologista. Coube a ele, todavia a sistematização inicial do assunto e o impulso para a criação de uma especialidade que embora nova, teve um grande desenvolvimento em nosso meio, a ponto de se puder disser que tudo o que exite em materia de assistencia e pesquisa nefrologica no Rio Grande do Sul iniciou-se na Enfermaria 2 com os trabalhos de Thomaz Mariante. Assim foi Thomaz Mariante, internista, rofessor, pesquisadodr e acima de tudo um semeador de ideias novas, um inspirador. Faleceu em 1975. A ultima vez que o vimos em publico foi quando lhe outorgaram o titulo de Professor Emérito da Univesidade Federal do Rio Grande do Sul, aos 82 anos de idade. Lembro-me do seu discurso de agradecimento, lido com voz entrecortada, tremula, a mão não podia fixar a folha de papel. Nessa ocasião senti uma profunda revolta pelos formalismos dos regimentos das instituições, que levaram 12 anos para conceder um titulo alguem que merecia ha muito tempo e mais do que qualquer outro. Por que não lhe foi dada a laurea ao vigor dos anos, ja que ensinou, pesquisou, inspirou e criou durante quase cinco decadas? Por que so naquele momento, num quase fim de vida? Não sei. Muitas vezes as instituições são incompreensiveis nos seus designios e ilogicas em suas decisões. De resto, o espirito superior de Thomaz Mariante levava-o a não se importar muito com esse tipo de honrara. Dizia Osler em conhecida frase que "chega o conhecimento, tarda a sabedoria" Isso não foi valido para Thomaz Marante pois conhecimento e sabedoria chegaram-lhe juntos e muito cedo, e procurou distribui-los a mancheias. Ser sabio é, sem duvida mais importante que ser emerito e sabedoria nunca lhe faltou. Neste momento em que a Faculdade completa os seus oitenta anos de fundação, fica registrada aqui minha homenagem a quem foi a maior figura da medicina interna nesta instituição. Escrita por OLy Lobato - Nicanor Letti a transcreveu para a eternidade.
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